André Luis Paolucci de Carvalho
Em uma manhã fria, entre minha colação de grau e a noite passada, caminhava pelos corredores indiferentes daquele hospital tão saudoso. Era uma instituição secular, imponente e abarrotada de relíquias: fotografias amareladas de pessoas elegantes, sorridentes em guarda-pós impecáveis de outras épocas.
Eram frequentes também oratórios e pequenos santuários para as orações tão necessárias num nosocômio. Como de costume, chegava cedo para a visita médica.
Adentrava os quartos e recebia sorrisos, abraços, olhares de apreensão e, às vezes, lágrimas de felicidade ou desapontamento. Era ocasião para acolher novos pacientes, assinar a tão desejada alta de outros e ajustar tratamentos daqueles que ainda precisavam de assistência hospitalar.
A Medicina, na sua essência, é a arte do cuidado, compreendendo seu contexto com empatia e respeito. É exercê-la com evidência científica, humanismo e espiritualidade.
No primeiro andar do hospital, havia um belo jardim de inverno onde árvores repletas de camélias dividiam o espaço com canteiros de hortênsias, margaridas e roseirais. Sentada numa cadeira de rodas, desfrutando do canto dos pássaros que ali passeavam, notei o semblante sereno de uma mulher idosa que, em silêncio, observava tudo ao redor.
— Bom dia, Dona Eulália!
Ela me olhou desinteressada e sorriu.
— Bom dia, Dr. André! Vou finalmente embora?
— Sim, minha querida. A senhora está recuperada e, daqui a pouco, estará em casa.
Com dificuldade, levantou-se da cadeira e, caminhando em minha direção, abraçou-me com ternura, demorando-se um pouco mais. Aproveitei para fazer uma última pergunta:
— Dona Eulália, como é completar um século de vida?
— Doutor André… — Ao erguer-se com esforço, seu corpo franzino pareceu ganhar uma inesperada firmeza. Seu abraço, prolongado e caloroso, carregava a intensidade de quem teme ser a última despedida. — Completei cem anos semana passada. Tantas primaveras… E olhe só onde estou: num jardim bonito, com um amigo gentil me dando alta, bisnetas me enviando mensagens no celular…
Ela riu, mas era um riso escondido em meio às névoas do passado.
— Viver é bom, doutor. Ainda sinto o gosto do café quente de manhã, o cheiro da terra depois da chuva… Mas sabe o que ninguém conta quando falam de chegar a essa idade? É que você vira um estrangeiro no próprio tempo. Meus filhos já se foram. Meu marido, meus irmãos, minhas amigas de infância… Todos partiram antes mesmo do novo milênio.
— E agora, quando minhas bisnetas me visitam, falam de coisas que não entendo, riem de histórias que não são as minhas. Até tentam, coitadas… Mostram-me vídeos, músicas, essas luzes que piscam no celular.
— Mas como explicar para elas o cheiro das lamparinas, o barulho das charretes, o sabor do primeiro sorvete que comi, o medo e a alegria da primeira vez que votei?
Ela olhou para as hortênsias, como se buscasse respostas nelas.
— O mundo delas é rápido, barulhento. O meu… o meu era de cartas escritas à mão e silêncios que não precisavam ser preenchidos. Às vezes, sinto que não pertenço a este mundo, como um livro esquecido na prateleira — todos sabem que existo, mas ninguém tem tempo para ler minhas páginas.
Pousei a mão sobre a dela, sem saber o que dizer.
— Mas então… a senhora acha que valeu a pena?
Dona Eulália fechou os olhos, deixando o sol acariciar seu rosto.
— Valer a pena? Ah, meu jovem… A vida não pergunta se a gente quer. Ela apenas acontece. E mesmo com toda a saudade, ainda escolho o cheiro das flores, o pão fresco de manhã, o jeito que minhas bisnetas me chamam de “vó Lília” mesmo sem saber quem eu realmente fui…
E então, com um sorriso que misturava lágrimas e luz, concluiu:
— Mas não se engane: viver muito é também aprender a carregar um tipo de solidão que não tem cura.
Naquela manhã, enquanto a acompanhava até o carro da família, entendi que alta médica não era a mesma coisa que liberdade.
André Luis Paolucci de Carvalho é o primeiro sucessor da Cadeira número 4 da Academia Barbacenense de Letras, cujo patrono é Saulo Duque Estrada. Cadeira fundada por Sidnei Cunha.