‘Ines Piacese: uma intrépida jornalista’, por Ângela Laguardia

A Acadêmica Ângela Laguardia, ocupante da Cadeira número 01

Com o título “ Ines Piacese: uma intrépida jornalista”, a Profa.Dra. Angela Laguardia  apresenta parte de sua pesquisa sobre o percurso da jornalista Ines Piacese em Barbacena.

O artigo foi apresentado inicialmente em Lisboa no V CONGRESSO INTERNACIONAL EM ESTUDOS DE GÊNERO NO CONTEXTO ITALIANO E EM LÍNGUA PORTUGUESA, em 2018,  e depois  publicado em São Paulo pela Editora Todas as Musas, em 2022. 

INES PIACESI, UMA INTRÉPIDA JORNALISTA

 

O cronista não vê o que os outros não vêem, mas o que os outros, mesmo vendo, desprezam[1].

 

Ines Piergentile (1895-1981) nasceu em Fabro, uma pequena cidade da região da Umbria, na Itália, e sua história em Barbacena, Minas Gerais, começa aos três anos, com a chegada de seus pais Orlando Piergentile e Maria Zucchetti Piergentile à cidade, em fins do século XIX, onde já existia uma colônia de imigrantes italianos.

Orlando Piergentile não foi um homem comum, era um notável empreendedor, dono de uma genialidade e uma personalidade marcante. E foram muitas as inovações que ele levou para Barbacena, merecedoras de um artigo à parte.

Segundo o historiador Nestor Massena, deve-se a ele “[…] com o seu dinamismo entranhado e entranhante, a sua febril e sublime operosidade […] ”[2], a existência do primeiro cinema de Barbacena, “[…] Cinema Moderno, de que era o empresário, o gerente, o diretor, o propagandista, o caixa, o vendedor de entradas, o animador de modo a assegurar-lhe a vida, êxito, prosperidade […] ”[3]. Com seu espírito progressista, “[…] deu a conhecer a Barbacena o primeiro automóvel, que aí trafegou,  quando só existiam aí os carros de tração animal, puxados por magros pangarés” [4]. Além de introduzir os primeiros aparelhos mecânicos de fabricação do pão na cidade, até então, um “[…] rotineiro processo de manipulação da massa, primitivo e anti-higiênico […] [5]”.

            Mas não foram só estes feitos…. É dele a iniciativa da construção de um sistema de abastecimento de água e de canalização fluvial, de um chafariz público e do aplainamento do morro de Santa Tereza, para a construção da primeira praça de esportes da cidade. O nome do local homenageia sua segunda esposa, a barbacenense Tereza Araújo, com quem se casa e constitui família, após o falecimento de Maria Zucchetti Piergentile.  

Orlando Piergentile viveu em Barbacena até 1920, ano que marca sua volta à Itália, levando consigo sua família, e nunca mais retornou ao Brasil, vindo a falecer em 1941.

Aqui ficaram, sua primeira filha, Ines Piergentile e o primo Aroldo Piacesi, que o acompanhou desde o início de sua jornada no Brasil, e a esta altura, já se casara com Ines.

Antes de se casar aos 17 anos, e após ficar órfã de mãe, aos sete anos, Ines Piergentile passou sua infância e adolescência no internato do Colégio Imaculada Conceição, sob os cuidados de Irmã Paula Bouisseau, que exerce papel preponderante em sua formação e no seu papel de futura educadora. Em 1912, sob a pressão das circunstâncias, Ines se casa com o primo, Aroldo Piacesi (1881) e viajam em lua de mel para a Europa. Em Roma, por recomendação de Irmã Paula Bouisseau, eles recebem a bênção matrimonial do Papa Pio X. O casal teve treze filhos, no período entre 1913 a 1935, porém, o desvelo com educação da família não impediu que Ines Piacesi se dedicasse à escrita. E, por volta de 1920, aparecem suas primeiras contribuições no jornal O Sericicultor, sob os pseudônimos de D. Paula e Seny.

Em 1923, ela se torna a jornalista do Apollo Jornal, que teve início com a inauguração do Cine Teatro Apollo, de propriedade de seu marido, onde contribui com doze artigos, e mantêm os pseudônimos anteriores. Curiosamente, Aroldo Piacesi também escreve sob o pseudônimo de Ausônio, e assina apenas um artigo. O jornal teve seu primeiro exemplar lançado em 12 de agosto de 1923 e o último em primeiro de janeiro de 1924. Trazia nas quinze edições publicadas, artigos, poemas e crônicas que davam notícias sobre a sociedade da época, além dos anúncios e da programação do cinema. É a partir deste periódico, de 1923, que Ines Piacese passa a ter uma postura mais progressista, a de feminista. Encontramos em uma das edições do Apollo Jornal, o poema “Sufragistas”, do professor e poeta barbacenense Junius, dedicado a um dos seus pseudônimos, D. Paula, datado de 14/10/23. Antes do poema, como moldura, seu agradecimento e a afirmação de que “[…] é feminista como o deve ser toda mulher desanalphabetisada[6], mas não é e nunca será… suffragista”[7]. Este posicionamento, aliado à publicação do poema, era estratégia necessária ao papel de jornalista e de mulher do interior de Minas, entre o público e o privado, refém de uma sociedade patriarcal. E convém lembrar que, apesar da movimentação das mulheres ser significativa na década de 20, com claro anseio à educação e à emancipação social, nem sempre o voto feminino foi um consenso. Na edição de 28/10/1923, com o título, “Eterno antagonismo”, D. Paula/Ines aborda a questão da competição entre os gêneros e o casamento com instigante epígrafe do Dr. Dutra: “Todo homem intelligente, deve se casar com uma mulher superior” [8]. O tema seria recorrente em sua escrita, através de diversos gêneros textuais que ela exerceu, sejam artigos, contos, “conselhos” ou outros.

Depois de um intervalo em suas publicações, Ines colabora no jornal Cidade de Barbacena e, em 1927, mantém uma coluna no Jornal de Barbacena, intitulada “Em torno da criança”, dedicada à pedagogia, com o pseudônimo de Dona Paula. Em 1928, ela abraça de vez a causa da educação, e inicia sua carreira como professora primária no Grupo Escolar Bias Fortes, em Barbacena, profissão que exerceria até1951.

Ines Piacesi continua a escrever para os jornais locais após 1930 e para diversos jornais do Estado, entre eles, o Jornal do Comércio e A Tribuna, de São João Del Rei; Diário Mercantil e o Lince, de Juiz de Fora; Correio Carmelitano, de Monte Carmelo; O Triângulo, de Araguari e Correio de Minas, Diário da Tarde e Estado de Minas, de Belo Horizonte. Além, de contribuir com seus artigos nos jornais do Rio de Janeiro, entre os quais, O Povo e o Jornal do Brasil.

Dividida em múltiplos papeis, de mãe dedicada, educadora, intelectual e jornalista, Ines Piacese rompeu com algumas das barreiras impostas às mulheres pela sociedade tradicional da época, embora seus posicionamentos possam até ser considerados ambivalentes. Há de se considerar o contexto em que ela se inseria, a formação familiar e religiosa, e também o contexto histórico-social. Na primeira metade do século XX, temos um painel de acontecimentos que aqui, resumidamente aludiremos como temas: na economia, o colapso da economia cafeeira e a queda da bolsa; na política, a ocorrência da Revolução de 1930 que marcou a ascensão de Getúlio Vargas ao poder; no âmbito mundial, a proximidade e eclosão da segunda guerra; na vida social, as mulheres começavam a lutar pela sua emancipação e pela conquista de direitos civis, e o sufrágio feminino era uma das bandeiras.

A atuação mais significativa de Ines Piacese corresponde justamente a este período, as décadas de 30, 40 e 50.

Ines Piacesi foi uma das primeiras jornalistas a ser filiada na Associação Brasileira de Imprensa, por volta de 1935 e, em 1939, participa como representante da imprensa de Barbacena no congresso de jornalismo, realizado na cidade de Campo Belo, Minas Gerais. De seu percurso jornalístico, destacamos a fundação do jornal Rubicon, em 1935, jornal de que foi proprietária e circulou até 1950. 

Rubicon mesclava contos, crônicas, poesias, notícias da cidade e outros gêneros textuais. O título do periódico foi tema de um de seus artigos, intitulado como: “Rubicon…Por quê?” e quando analisamos a data em que escreveu, 15 de junho de 1948, e seu percurso, entendemos o porquê da escolha. Assim, segundo ela, Rubicon era o nome de um pequeno rio que ficava ao norte do território latino e servia de divisa, quando o imperador romano Júlio César veio das Gálias (França) para entrar em Roma e combater os inimigos, ele atravessa o rio em ato de coragem e ousadia, e menciona célebre frase: “ALEA JACTA EST” (A sorte está lançada). E termina: “Eis porque, ao se tomar uma decisão de sérias consequências, costuma-se apelar para o RUBICON”[9].

Rubicon era sempre acompanhado de um subtítulo explicativo e significativo, que variou quatorze vezes no decorrer e no contexto de suas publicações. Inicia com a legenda: “RECREATIVO–NOTICIOSO, BRINCALHÃO E TEIMOSO”, e a partir da edição de número 73, passa a: “NÃO É JORNAL POLÍTICO, NEM TEM PARTIDO, MAS GAROTO IRREQUIETO SEMPRE INTROMETIDO E… IMPERTINENTE, DIZ O QUE SENTE. RECREATIVO, LITERÁRIO – NOTICIOSO – IDEALISTA” [10]. Durante o período em que manteve este subtítulo, o semanário, ao contrário, trazia notícias sobre a política, principalmente, sobre a italiana e a brasileira, incluindo os perfis de Mussolini, Getúlio Vargas e Plínio Salgado, entre outros.

Nos diferentes espaços que Ines Piacesi criou no periódico, havia colunas sobre educação assinadas por ela, como “Educar – Educando” ou “Coluna Pedagógica”, e artigos sobre o mesmo tema, que variavam de forma. Ao mesmo tempo, ela assinava contos sob o antigo pseudônimo, D. Paula, no espaço denominado “Conto do Rubicon,”, muitas vezes divididos em diferentes edições, em perspicaz estratégia. Os artigos sobre a mulher, com conselhos, prescrições e táticas sobre o comportamento feminino, casamento e outros relacionados a este universo, pertenciam à coluna “Rumo ao Lar”. Além destes formatos, o periódico dialogava diretamente com o leitor, na chamada “Enquete”, e trazia perguntas relacionadas a diferentes temáticas, entre as quais, “o ciúme”, tema que se estendeu ao longo de algumas edições, com a opinião dos dois gêneros e suas diferenças.

O jornal publicou poemas de sua autoria, entre eles, com o pseudônimo de D. Paula, temos um intitulado “Doce amiga”, dedicado à escritora Albertina Bertha (1880-1953), a autora de Exaltação, em 4 de janeiro de 1936.E, também, promoveu autores de Barbacena, além de trazer importantes nomes, como Cecília Meireles, da literatura brasileira e Virgínia Victorino, da literatura portuguesa.

Na diversidade de seu modelo, Rubicon seduzia seus leitores, em constante “movimentação”, incluía alguns anúncios e, principalmente, a propaganda dos filmes do Cine Teatro Apollo, reunidos semanalmente na coluna denominada “Cinédia”, o que tornava o jornal comercial e ao mesmo tempo um entretenimento.

Sob o ponto de vista do feminismo, recortamos alguns trechos do Rubicon,na impossibilidade de falar de todos. Na edição de 27 de julho de 1935, Ines Piacesi se refere ao feminismo no Paraguai e a atuação das mulheres paraguaias em comparação com as brasileiras: “A mulher paraguaya é bem menos commodista do que nós, brasileiras”[11]. Em fevereiro de 1936, ela escreve um artigo sobre Bertha Lutz, presidente da Federação Pelo Progresso Feminino, eleita para a Comissão dos 20, do Comité Internacional de Mulheres, com rasgados elogios pelo seu trabalho em prol das “[…] questões sociais em torno da <mulher-trabalho>, da <mulher-espírito> […] [12], assim como sua repercussão no exterior, que destacava o Brasil.

 Na edição do dia 27 de agosto de 1939, ela assina o artigo “Escritor denegridor e mau brasileiro”, e critica um jornalista do Diário do Comércio, de São João Del Rei, que havia denominado as mulheres de “sirigaitas” pela questão do feminismo e do voto, dos cargos como o de deputada, ministra, jurada, chefe de seção e enfim de mulher dinâmica.  Em defesa das mulheres, a jornalista responde com as seguintes palavras:

Então, meus leitores queridos, será possível que a mulher que trabalha, que procura ser útil a si e a sociedade, que desenvolve a sua capacidade de trabalho sem perder seu decoro e a sua feminilidade, seja sirigaita?

Não é o trabalho justamente que conserva a virtude e enobrece, que purifica a alma das criaturas? Quem trabalha, não tem tempo para serigatear Incoerência e despeitos. Quem poderia negar a mulher o direito de desenvolver sua capacidade intelectual?

Outras, para garantirem seu futuro, se atiram corajosas à conquista de sua independência, quando podiam bem frescas bancarem eternas comodistas em seus lares, onde há sempre, por mais pobre, lugar para elas.

Como poderemos chamar um escritor que tem coragem de difamar cousas assim tão sublimes e tão edificantes?

Caso existisse a mulher dinamica, porque ela deveria ser sirigaita? Não seria antes uma gloria para o sexo?

E que culpa tem de ser incarnado, em sexo feminino, algum espírito luminoso, que se elevou com toda a campanha mesquinha que lhe faz um cronista denegridor, à deputada ou à chefe de secção?[13] .

 

          Em artigo datado em 4 de março de 1939 , Ines Piacesi se dirige aos leitores: “Aos nossos amigos leitores”,e justifica a ausência da publicação em tom de brincadeira, mas deixa o seu recado às mulheres:

Quem conhece a vida dificultosa deste “garoto” idealista, o único jornal de mulher  que há  no Brasil, dificuldades de todos os aspectos, por, quanto, há dois mil anos,

 é sempre a mulher-espírito, a preterida no mundo, dará valor ao esforço do Rubicon […][14].

Não era o único jornal do Brasil… Mas pela ousadia de uma época, e em uma cidade do interior, o jornal cumpriu o seu papel. Imbuída pela coragem e o compromisso de educar ou mesmo assumindo publicamente sua admiração pelos líderes políticos que, neste relato e recorte, não questionamos, ou redigindo para as mulheres ou para o público em geral, Ines Piacesi como outras mulheres que escreveram, também escreveu a sua história…

[1]“CASTELLO, José, “A vertigem de sobreloja” in O Globo, 5 de junho de 2010, “ Caderno Prosa & Verso.

[2]MASSENA, Nestor da. Barbacena: A terra e o homem, Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1985. v. 1.,p.105.

[3] Ibidem.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem.

[6] As citações obedecem a grafia da época.

[7] Apollo Jornal (Órgão da Empreza “Cine Theatro Apollo”), Barbacena 14 de outubro de 1923. Num.10, p. 3.

[8] Apollo Jornal (Órgão da Empreza “Cine Theatro Apollo”), Barbacena, 28 de Outubro de 1923. Num.12, p. 2.

 

[9] Rubicon, Barbacena, 15 de Junho de 1948. ANO XIII, N.243, p.7.

[10] Rubicon, Barbacena, 5 de Dezembro de 1936. ANNO II, N.73, p.1.

 

[11] Rubicon, Barbacena, 27 de Julho de 1935. ANNO I, N.7, p.4.

[12] Rubicon, Barbacena, 01 de Fevereiro de 1936.ANNO II, N.35, p.4.

[13] Rubicon,Barbacena, 27 de Agosto de 1939.ANNO IV, N.145, p.1.

[14] Rubicon,Barbacena,  04 de Março de 1939.ANNO IV, N. 131, p.1.